sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Perdão

Izabel Santa Cruz Fontes


Hoje sonhei que te perdoava. Estamos sentados frente a frente, desconfortáveis, com olhares perdidos. Eu podia sentir o teu desespero mudo no ar, tocar nele, moldá-lo à minha maneira, fazer dele capricho meu. Você fingia tomar seu café e olhar pela janela. O café estava tão quente que era quase uma presença humana. Éramos, então, quatro: eu, você, o café e seu desespero, percebi nisso metáfora indizível. Mesmo no fim, mesmo em sonhos, nunca sozinhos.

Sádica, eu folheava o jornal displicentemente e jogava os cadernos pelo chão, bagunçando tudo de propósito, como que para te irritar pela última vez. Você, numa coragem súbita, quebra o silêncio. Apenas ergo os olhos, fitando-te friamente e volto a uma notícia tediosa, no caderno de política. Falava alguma coisa sobre um tratado político no Sul da África... você fala, fala, fala. Fala coisas que eu não entendo, ou não lembro. Diz que se arrepende, pede desculpas, promete o céu e felicidade eterna. Continuo a ler, termino mais uma página e a jogo no chão, quase com desprezo. Sentindo o corpo inteiro estremecer, numa raiva contida, você se limita a olhar com o canto do olho a mais uma provocação e ignora, permitindo-se um resto de orgulho.

Ao perceber que ainda somos nós — você, puro orgulho, eu, pura implicância — dou um meio sorriso, sabendo que não tenho o direito de me sentir feliz. Você, de repente, percebe tudo e dá um sorriso largo, criança em dia de natal. Surpresa, apenas arregalo os olhos, você ri do meu espanto. Mais alto. Gargalha. Contagiada, vou sentindo minha boca se abrir, tímida, até se escancarar. Sentimos o corpo tremer e rimos, em uma crise guardada, sem explicação, sem motivo.

Passamos tempo incontável assim, a rir sem motivos e, de repente, paramos. Pela primeira vez, nos olhamos de verdade, com olhos de quem ri, inocentes e carinhosos. Finalmente, nós dois entendemos e, calados, aceitamos nosso destino: orgulho e implicância. Nos perdoamos.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

PALAVRAS - Titãs

Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números pra os dias
E os nomes pra as pessoas
Palavras eu preciso
Preciso com urgência
Palavras que se usem
em caso de emergência
Dizer o que se sente
Cumprir uma sentença
Palavras que se diz
Se diz e não se pensa
Palavras não tem cor
Palavras não tem culpa
Palavras de amor
Pra pedir desculpas
Palavras doentias
Páginas rasgadas
Palavras não se curam
Certas ou erradas
Palavras são sombras
As sombras viram jogos
Palavras pra brincar
Brinquedos quebram logo
Palavras pra esquecer
Versos que repito
Palavras pra dizer
De novo o que foi dito
Todas as folhas em branco
Todos os livros fechados
Tudo com todas as letras
Nada de novo debaixo do Sol

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

bem...meu bem

Meu bem.,Você viverá coisas,Contará histórias...E na maioria delas eu não estarei lá. Mas você sabe quais histórias são e guardarás em uma caixa e abrirás quando se sentir triste e azedo como agora. Lembrarás de como eu sorria e como me calava. De como éramos casal dos anos cinqüenta, te lembrará de hoje como um sonho “bom”. Lembrarás das minhas mãos e dos meus passos e de como me esforcei para você conseguir ver beleza e alegria nas coisas pequenas. Surpresas,Carinhos, Abraços... amontoados de saudade... Esse mistério todo e silêncio e olhares ocultos e cheio de camadas e camadas e camadas e camadas e camadas...
Meu bem. Somos dois loucos amontoando e compartilhando loucuras que só a noite consegue ver, pois são tão luminosas. Que os sonhos eram tão esquizofrênicos, era verdade. Mas a verdade que não sabemos era que essa é a realidade. Somente evitamos... E tentamos evitar, evitamos o tempo todo. Nós sabemos mais coisas do que pensamos saber e nunca sabemos a hora, somos assim. Não que falemos coisas erradas, não, simplesmente não falamos, vulgarizar palavras é algo errado e não há nada mais profundo que o silêncio, meu bem. Você está indo embora e tenho tanta coisa pra te falar. Vou sentir saudades. Vou sair por aí e ser uma pessoa muito mais grosseira do que realmente sou e vou ficar feia e usar roupas horríveis. Vou olhar pra minha mão e me lembrar da tua que tocava nela de um jeito que só você sabe, meu bem. Eu queria ter te conhecido melhor. Vivido mais com você e agora você vai embora e conhecerá pessoas ótimas e se esquecerá de que eu era, até certo ponto, interessante. Cara, como a nossa forma de ser,de ‘tudo’,era diferente...tão não convencional;toda a alegria, e a tristeza também, é claro, mas disso nada adianta. O que valia, meu bem, era a intensidade. Coisa que sempre teve, que foi a intensidade. Você vai crescer, mudar e voltar. Talvez te veja em um lugar por aí e pense quem é esse cara ?esquece... e daí chegar em casa, fazer o café e me lembrar 'ah...aquele cara...'. Os dezembros. Os dias. A grama.
Que medo eu estou. Me salva como te salvei ‘e como você me salvou?’.
Que história..e que triste eu estou de você estar partindo agora e ter me partido por completo indo embora pra um lugar longe o bastante pra não me ver, mais longe do que os olhos alcançam, e talvez, mais distante que a mente alcance...
Meu bem. Volte logo e me conte todas as suas histórias.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Tudo pra você

(Eduardo Baszczyn)


Não, não precisa se levantar, não. Você pode ouvir tudo isso aí mesmo, no sofá. E pode fechar também esse sorriso. Eu não estou de volta. Está ouvindo? Dirigi até aqui, passei pelo seu porteiro curioso, subi por esse seu elevador cheirando a mofo, pra lhe dizer exatamente que eu não estou de volta. Que você pode ficar com tudo. Com seu livros empilhados, com seus discos mal guardados, com suas plantas quase-mortas, por não serem mais regadas. Você pode ficar com tudo. Com esse seu vaso de flores amarelas de plástico, empoeiradas pelo que vem dessa janela sempre entreaberta. Pelo que vem com o cinza dessa cidade imunda. Fique com tudo. Com esse seu apartamento minúsculo. Com essa caixa de fósforos do décimo sexto andar. Não quero nada. E só achei que deveria saber que você pode ficar com tudo. Com os meus beijos e com os meus apertos, inclusive. Com os meus carinhos feitos quando eu, tolo, acreditava que você era o que eu andava precisando. Só achei que deveria saber que esta é a última vez que me viu por aquele olho-mágico da porta, antes de me espiar por ele, de costas, indo embora, de uma vez por todas, por aquele corredor com marcas de mãos pretas pelas paredes. Achei que precisava lhe avisar que não quero mais nada. Que você precisava saber que esta é a última vez que estou pisando nesse seu carpete desfiado. Olhando para todo esse caos, que um dia chegamos a chamar de paraíso. Não, não precisa se levantar, não. Você pode ouvir tudo isso aí, com essa bunda grudada no sofá. Eu só passei mesmo pra dizer que não quero nada de volta. Nem aqueles beijos todos. Poderia fazer com que cuspisse um por um, agora mesmo, de joelhos sobre o tapete. Mas eles não vão me fazer falta. E eu estou meio com pressa. Me desculpe, mas eu só passei por aqui realmente pra avisar que não, eu não estou de volta.